Desde tenra idade que Celeste Almeida se lembra de ver os rebanhos transumantes a passar à porta de casa dos pais, em Canedo do Chão – Mangualde, rumo a Barbeita ou Fragosela, já no concelho de Viseu, onde se concentravam os animais, vindos de várias rotas. Assim que passasse o São João, começava este movimento migratório.

Os territórios de origem incluíam as faldas da serra da Estrela, nomeadamente Mangualde, Seia, Carregal do Sal, Oliveira do Hospital, Nelas, Coimbra e Viseu, onde na época quente escasseavam as pastagens, e seguiam em direção à serra do Montemuro, em Castro Daire.

“Era uma vida dura para os pastores, mas um espectáculo para quem via, com os rebanhos enfeitados com pompons e as ovelhas pintadas com as letras para se identificar o dono”, recorda.

Nos terrenos verdejantes da paisagem serrana chegavam a juntar-se 25 mil cabeças de gado. Pelo São Bartolomeu, no fim de agosto, ou inícios de setembro, estando as colheitas já feitas nas terras de origem, os animais regressavam.

Conta Celeste Almeida que não se sabe precisar a origem temporal destes movimentos pastoris, mas aponta-se para inícios do século XIX ou mesmo finais do século XVIII, uma vez que a rota foi descrita por escritores como Abel Botelho ou Amorim Girão. No mirante, a população começava a ver aparecerem os rebanhos que, vindos de Ribolhos, atravessavam a ponte Pedrinha e chegavam em grande ao jardim municipal, perante o aplauso da comunidade.

Uma curiosidade é o fato de, no século passado, ser preciso pagar para integrar o movimento transumante. O patrão chegava junto dos pastores e perguntava se queriam levar o rebanho para o Montemuro, pagando estes uma certa quantia por cabeça de gado. “Com esse dinheiro, o patrão tinha de arrendar os montes e dar de comer aos guardadores”, nota. O pároco, o presidente da junta de freguesia ou uma pessoa da aldeia que ficasse responsável por fazer a administração do baldio negociava com “os chamados patrões”. Geralmente, as licitações faziam-se no final da missa, e os patrões “picavam-se uns aos outros”. Aí entrava a lei do mercado e quem tivesse mais dinheiro ficava com os terrenos que lhe interessava, sendo os montes da Gralheira, Póvoa do Montemuro e de Faifa os mais apetecidos. Era uma renda que “dava jeito aos locais”.

Castro Daire era caso único, não só bela beleza do espetáculo como também pelo pagamento de imposto camarário para os rebanhos passarem a ponte Pedrinha. O valor viria a extinguir-se com o 25 de abril de 1974.

Chegados ao topo do Montemuro, o maioral, que tinha de ser alguém que conhecesse muito bem o território, encaminhava os rebanhos transumantes, que representavam grandes organizações, incluindo um cozinheiro e um almocreve, que transportava os utensílios e mantas para agasalho durante a noite.

Também aqui havia rituais próprios, que Celeste Almeida descreve. Na hora de calor, com o rodeio, os pastores procuravam zonas frescas e tomavam a refeição, que “era de lume”. Sentavam-se em pedras, à roda da caldeira, e a refeição iniciava-se quando o maioral desse três pancadas e tirasse uma porção.

O jantar era, por norma, mais generoso, com carne, hortaliça e um pouco de vinho levados pelos locais. Os bens alimentares serviam de moeda de troca por os animais permanecerem nos alqueves onde seria semeado o centeio, fertilizando-os com os seus excrementos.

Num dia a dia marcado pela dureza, as cantigas ajudavam a esquecer as amarguras, nota a responsável, falando também no convívio que se proporcionava entre pastores e a comunidade local e na mudança sociológica que essa partilha trouxe, nomeadamente ao nível familiar, na cultura, tradições e influência no folclore.

Com o decréscimo do pastoreio – condicionado pela abertura de autoestradas e a instalação de eólicas, que destruíram as canadas e os pastos; bem como pela emigração e a desertificação, que levaram ao abandono das terras, permitindo que os animais se alimentem mais perto de casa – a transumância perdeu força. A última rota teve lugar em 1999, já só 900 cabeças de gado, um número muito reduzido para a realidade histórica, nota Celeste Almeida, realçando que “sendo uma vida de solidão, é preciso ter alma de pastor”.