Muitos dos meandros da contestação ao Estado Novo em Vouzela viviam-se, à noite, na cave da Pensão Marques, também conhecida como Cova Funda, estando sempre presente o receio da visita da PIDE ou de informadores, que ficavam ao portão a escutar e a ver quem saía.

O espaço era gerido por Alice de Jesus Marques, mãe de Raquel Ferreira. Já o seu pai, José Maria Ferreira, era proprietário da Pensão Jardim e da mercearia Pérola de Lafões, e tinha aspirações políticas, que o levaram a exercer funções em diversos órgãos autárquicos, pelo PCP, MDP e CDU.

A Pensão Marques era um centro de confluência de vivências, com gente de diversos locais do país, o que fez com que Raquel Ferreira crescesse com uma maior consciencialização social.

A sua infância foi, no entanto, marcada pelo rigor. Na escola primária, por exemplo, além de rezar-se diariamente nas aulas, o crucifixo e a fotografia de Salazar e de Américo Tomás estavam presentes, bem como a filosofia inerente ao Estado Novo: Deus, Pátria, Autoridade.

Já no alvor do 25 de abril de 1974, aos 17 anos, frequentava o 11º ano na Secção Liceal, em São Pedro do Sul. E se em casa não se apercebeu de nada, os primeiros ecos da revolução chegaram no autocarro, a caminho da escola, onde os professores, muito “elucidativos”, explicaram a situação. “A preocupação deu lugar ao conhecimento”, conta, recordando que se seguiram momentos de grandes encontros, Reuniões Gerais de Alunos e saneamento de professores.

“A consciência política ficou mais arreigada” com as reuniões que o grupo de jovens fazia na sede do Movimento de Esquerda Socialista e a primeira comemoração do 1º de Maio, em Vouzela, com gente de todas as idades a juntar-se na Alameda, manifestos a serem lidos, cânticos e muita vibração no ar.

O ato de rebelião contra a Comissão Administrativa – em que se gritaram palavras de ordem como “A Câmara é do Povo, não é de Moscovo” –, a vinda do Movimento das Forças Armadas, que também se alojava na Pensão, as saídas à noite para colar cartazes, os comícios e as reuniões também marcaram este período.

Já na escola, destaca “a abertura para falar à vontade, a relação mais próxima entre professores e alunos, a politização e a sensibilização para a política”, que passou para a sua vida pessoal. Raquel Ferreira já participou nas eleições de 1976 e começou logo a ficar nas mesas de voto, assumindo um papel de cidadania ativo. Sem nunca se filiar, passou pela Assembleia e Junta de Freguesia de Vouzela e pela Câmara e Assembleia Municipal.

“Quem vive sente de uma forma diferente. Há 50 tinha a perceção de que as desigualdades e as injustiças sociais iriam esbater-se. Era tempo de estarmos noutro nível e patamar. Foi por isso que lutámos e continuamos a lutar”, sustenta, defendendo tratar-se de “um desafio comum”.