A Binaural/Nodar levou a cabo entre 2015 e 2018 uma longa investigação sobre o ciclo do linho na aldeia de Várzea de Calde (freguesia de Calde, município de Viseu), em estreita colaboração com o Museu do Linho de Várzea de Calde. Como resultado dessa investigação, co-financiada simultaneamente pelo Programa Viseu Cultura do Município de Viseu e pelo Programa Europa Criativa (rede Tramontana), foi publicado o livro bilíngue (português e inglês) “Várzea de Calde: Uma aldeia tecida a linho”, foi lançado o CD “Cancioneiro do linho e da vida rural” do Grupo Etnográfico de Várzea de Calde e foram efetuados dezenas de registos sonoros e audiovisuais, os quais fazem agora parte do Arquivo Digital Binaural Nodar e do Arquivo Viseu Rural (http://www.viseururalmedia.org)

Até há meio século atrás, não existia aldeia beirã onde não fosse cultivado o linho. O cultivo do linho respondia às necessidades ancestrais de abrigo, proteção e conforto do corpo (roupas de vestir ou de cama), sendo que o mesmo existia, tal como acontecia com as restantes produções agrícolas e pecuárias, no contexto de uma economia de auto-subsistência, na qual a maioria da produção de tecidos era para o uso da família, sendo igualmente comum que o trabalho (por exemplo, fiar ou tecer) ou o produto final (os tecidos) pudesse ser trocado por outros trabalhos ou bens, ou ainda, que os excedentes fossem vendidos nas feiras que existiam nas aldeias ou vilas principais da região.

Com a industrialização, o mercado passa a disponibilizar os têxteis de que a população necessita a um preço inferior (algodão, tecidos sintéticos, etc.), muitos deles oriundos de países em vias de desenvolvimento, onde os custos de mão de obra são inferiores aos de Portugal, uma consequência da crescente globalização económica.

Em Várzea de Calde, cultivava-se quase sempre o linho galego. O linho galego, da subespécie crepitans, tem flores pequenas e cápsulas muito abertas, semeando-se na Primavera, em terrenos regadios, ou seja, terrenos húmidos e fundos pela proximidade de água de ribeiros ou de sistemas de rega comunitária. O linho tem uma planta de haste fina, cuja fibra resultante é igualmente fina e curta, atingindo cerca de 35 a 50 cm de altura. O linho que se cultiva na região tem dois tipos de utilidade: fibra (o caule) e semente (o sistema reprodutor).

Em 18 maio de 2016 foram gravadas a primeiras fases do ciclo do linho: o lavrar e preparar a terra e o semear o linho, as quais se descrevem longamente abaixo, sendo ilustradas com o próprio registo videográfico.

Gravação de Manuela Barile. Edição de Liliana Silva.

 

Lavrar a terra

Os terrenos onde se semeia o linho são conhecidos na aldeia pelo nome de linhais (singular, “linhal”). No caso concreto, o linhal escolhido pelo Grupo Etnográfico de Várzea de Calde foi um terreno denominado “salgueiro”, junto à estrada em direção a Vila Pereira.

Bem cedo, numa manhã fresca de primavera, iniciou-se o primeiro passo de preparação da terra, o qual consiste, num primeiro momento, em formar no terreno montes de matéria orgânica fertilizante, provinda das “cortes” (currais) dos animais, adubo ou estrume de origem simultaneamente animal e vegetal. Este estrume era, noutros tempos, transportado em carros de vacas até ao linhal, sendo que, mais recentemente, passou a ser utilizado o trator, usando-se a sua caixa atrelada para transportar o estrume e forquilhas ou enxadas para o deitar na terra, em montes equidistantes, de forma a facilitar o posterior processo de espalhar esse mesmo estrume.

Normalmente, existe um hiato de tempo entre a colocação dos montes de estrume no linhal e o momento da sementeira, uma vez que, no início da primavera é oportuno “limpar a cama” dos animais, ou seja de renovar a matéria vegetal (palha de milho, carqueja, tojo, etc.) dos currais, pelo que é nesse momento que se procede normalmente ao transporte do estrume acumulado no inverno para o campo.

No dia da sementeira, procede-se, então, ao processo de espalhar o estrume uniformemente no terreno, com a ajuda de forquilhas e, em seguida lavra-se o terreno, ou seja mistura-se a terra em sulcos direitos, com a ajuda de um arado, no caso documentado atrelado ao trator, antigamente atrelado ao carro de vacas com uma junta (um par) de vacas junguidas (treinadas previamente) a servir de força motriz.

O processo seguinte é a gradagem, com a grade de dentes (atualmente de ferro, antigamente de madeira) igualmente puxada pelo trator (antigamente pela junta de vacas). A gradagem complementa o processo da lavragem, ajudando a desfazer os torrões que escaparam ao arado e, por outro lado, permite alisar o terreno para se proceder à sementeira. Realizam-se normalmente duas gradadas cruzadas com os dentes voltados para baixo. Em seguida passava-se a grade com dentes voltados para cima, de costas, para alisar, e só depois se procede à sementeira.

Semear o linho

Depois de a terra estar pronta, começa-se a sementeira que consiste num conjunto de pessoas, tradicionalmente a família e alguns vizinhos a quem se rogava (pedia) a ajuda, distribuídas no terreno e carregando baldes com a linhaça (sementes do linho), a qual é lançada manualmente, pegando numa mão cheia de sementes e lançando-as com movimentos circulares, em várias direções cruzadas, ao longo do campo.

Sendo que é importante que existam suficientes sementes distribuídas no terreno para que possam germinar, é importante que a sementeira não seja rala (ou seja escassa) nem basta (ou seja excessiva) para que o linho não fique, respetivamente, demasiado alto e grosso nem demasiado pequeno e fino. Para que se confirme que a quantidade de sementes é a certa, é costume molhar-se um dedo e enfiá-lo na terra semeada. Se vierem meia dúzia de sementes agarradas ao dedo, é sinal de que a sementeira foi adequada.

Em Várzea de Calde é comum, logo depois da sementeira, espalhar-se cinza de lenha em todo o campo. A cinza é um resíduo rico em compostos à base de potássio, magnésio, cálcio e sódio, assim como elementos minerais como o enxofre, o silício, o ferro e outros. A cinza atua quer como um corretor do solo, ao aumentar o seu pH, quer como indutor ou catalisador do metabolismo das plantas, ao acrescentar oligoelementos ou micronutrientes.

Por último, a manhã de preparação da terra e de sementeira termina com uma gradagem final (com os dentes voltados para cima) e com a preparação do rego mestre e dos regos transversais (oblíquos), por onde vai passar a água da rega, de forma a chegar a todo o linhal. Esta preparação é concretizada com a ajuda de sachos ou sacholas que vão abrindo sulcos ao longo do percurso desejável da água.